Na fotografia são três elementos que compõem a imagem. E antes que você desista, não. Esse não é um texto sobre técnica. Mas vamos lá. São três elementos: o ISO, a abertura do diafragma e a velocidade do obturador. Trocando em miúdos, o ISO é a sensibilidade à luz; abertura do diafragma é o quanto você abre o... bem, o diafragma; e a velocidade do obturador é o tempo que ele fica aberto recebendo luz.
O ISO vem lá da época da fotografia em filme. Você lembra quando a gente comprava filme com ISO 100 e as fotos na praia ficavam legais, mas toda foto dentro do restaurante ficava escura. Pois é, a sensibilidade 100 pra luz do sol funciona, mas pra um lugar mais fechado a gente precisa de mais sensibilidade. Mas ninguém comprava filme ISO 400 pra tirar foto dentro do restaurante.
A abertura a gente conta em "f" stops. Quanto menor o "f", maior a abertura. Então uma foto com "f 1.8" a lente fica mais aberta que um "f 9". Quanto mais aberta mais luz entra, mas menos coisa fica em foco. Pois é. Dilema da vida.
E a velocidade é simples, quanto mais tempo aberto, mais luz entra e mais clara a foto. Se o tempo aberto for longo você terá uma longa exposição, como nessa foto de Rag Hurai:
Ou essa do magnífico fotógrafo australiano Trent Parke:
Fun fact: essa foto são sombras de pedestres na calçada refletidas em um ônibus branco capturada em longa exposição.
Como na vida, a gente vai equilibrando esses três elementos. Se eu quero uma imagem bem focada das crianças correndo, a lente tem que ser rápida. Logo, a velocidade não pode ser muito baixa. Mas se a velocidade não for muito baixa entra menos luz. Além disso, também preciso deixar todo mundo em foco. Então a lente não deve ficar tão aberta. Lembra, quanto mais aberta mais luz entra, mas menos coisa fica em foco? Me sobrou o ISO. Então aumenta o ISO pra ficar tudo claro, rápido e em foco. Ou usa lente mais aberta e mais detalhes em foco. Ou diminui a velocidade e faz uma foto borrada bem artística.
Bem, a questão é que se você muda um desse elementos precisa compensar com outro. Não dá pra ter tudo. Como na vida.
Chorão, assim como Sartre, acreditava que somos responsáveis pelo que somos e condenados a decidir o tempo todo. E cada escolha...É. Escolher uma coisa é não escolher outra coisa.
A vida é como tirar foto a todo momento. É como balancear ISO, velocidade e abertura.
E às vezes a gente não sabe o que vê. Ou tudo que vemos é uma fantasia criada na ponta da língua do inconsciente (como diz Ana Suy, o inconsciente não mora nas profundezas da mente, como se imagina, mas taí na ponta da língua, como os atos falhos). Voltemos. Ou tudo que vemos é uma fantasia do que gostaríamos que fosse a vida. Por isso a gente insiste nos erros. Acha que dessa vez vai ser diferente porque a fantasia disse que vai. Aí topamos com a realidade que nos machuca ali onde a gente deveria lembrar que ela não bate com a fantasia.
Fotos com textura são deslumbrantes e difíceis. E me dão uma sensação do inconsciente. Como essas do Saul Leiter:
O trabalho terapêutico então é se dar conta da fantasia para dar conta da realidade. Incorporar ela. E se haver com ela. E ver o que dá pra fazer com ela, a realidade. Não tem como saber de antemão. Não dá pra controlar. Mas é menos doído do que levar tombo da fantasia que não se realiza.
Trent Parke é um dos fotógrafos que mais admiro. E ele tem uma série de fotos que ele fez em várias praias australianas. O projeto chama "The Seventh Wave":
Para além do deleite estético, a história que ele conta é que ele não tinha ideia do que estava capturando e era impossível enquadrar qualquer coisa embaixo d´água. Raramente ele tinha controle do que ia conseguir capturar.
Como sempre na vida - ah o imponderável - ele cometeu um erro e colocou a bateria da câmera ao contrário e perdeu as fotos daquele dia, menos uma, feita com alta velocidade (lembra do ISO, abertura e velocidade?). Essa ficou perfeita, capturando os nadadores em velocidade (lembra das crianças correndo?) e a luz do sol (rápida, mas não escura). Dali em diante, continuaram com essa configuração.
É como lidar com a fantasia. Deixar pra lá a textura do inconsciente e a fantasia que nos proíbe de ver a realidade, deixar a onda passar e subir pra respirar. Pegar ar. E depois de revelada a foto, encarar a realidade. Que pode ser uma foto ruim debaixo do mar. Mal exposta. Mas pode nos colocar diante de uma nova realidade. Não sem renunciar as outras escolhas, mas por causa delas tomar um rumo. Mais verdadeiro porque real. Mais duro porque real. Mas mais nosso.